Por Célio Barcellos
Êxodo 3 #rpsp
Hurbinek era um nada, um filho da morte, um filho de Auschwitz. Aparentava três anos aproximadamente, ninguém sabia nada a seu respeito, não sabia falar e não tinha nome: aquele curioso nome, Hurbinek, fora-lhe atribuído por nós, talvez por uma das mulheres, que interpretara com aquelas sílabas uma das vozes inarticuladas que o pequeno emitia, de quando em quando.
Hurbinek estava paralisado dos rins para baixo, e tinha as pernas atrofiadas, tão adelgadas como gravetos; mas os seus olhos, perdidos no rosto pálido e triangular, dardejavam terrivelmente vivos, cheios de busca de asserção, de vontade de liberta-se, de romper a tumba do mutismo.
As palavras que lhe faltavam, que ninguém se preocupava de ensinar-lhe, a necessidade da palavra, tudo isso comprimia seu olhar com urgência explosiva: era um olhar ao mesmo tempo selvagem e humano, carregado de força e de tormento.

Um jovem húngaro chamado Henek de apenas 15 anos de idade era o que Hurbinek tinha de mais próximo comparado à figura do pai. Na verdade, Henek esboçava um amor maternal para com ele.
Henek sentava-se junto àquele pequeno ser e levava-lhe comida, ajustava-lhe as cobertas, limpava-o com mãos habilidosas, desprovidas de repugnância; e falava-lhe, naturalmente, em húngaro, com voz lenta e paciente.
Após uma semana, Henek anunciou com seriedade, mas sem sombra de presunção, que Hurbinek “dizia uma palavra”. Que palavra? Alguma coisa em húngaro como mass-klo, matisklo.
De noite ficávamos de ouvidos bem abertos: era verdade…, do canto de Hurbinek vinha de quando em quando um som, uma palavra.
Hurbinek continuou, enquanto viveu, as suas experiências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o ouvíamos em silêncio, ansioso por entende-lo, e havia entre nós falantes de todas as línguas da Europa: Mas a palavra de Hurbinek permaneceu secreta.
Hurbinek, que tinha três anos e que nascera talvez em Auschwitz e que jamais teve a oportunidade de ver uma árvore;

Hurbinek, que combatera como um homem, até o último suspiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, do qual uma força bestial o teria impedido;
Hurbinek, o que não tinha nome, cujo minúsculo, antebraço fora marcado mesmo assim pela tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido (Primo Levi, A Trégua. Editora Sshwarcz, 2019, p. 19-21).
O relato acima me causou um profundo impacto quando o li pela primeira vez. E continua a me impressionar, todas as vezes que o releio.
Na reflexão de hoje, o texto bíblico localiza Moisés junto aos midianitas, cerca de 40 anos após o seu nascimento no contexto de sua fuga do Egito, por fazer justiça com as próprias mãos ao matar um soldado egípcio para salvar um escravo hebreu.

Em sua lida pastoril, longe da badalação do poder, sem grana, dependendo do sogro, mas com a perceção aguçada para observar as campinas, o céu límpido e azul do dia e majestosamente estelar à noite, eis que o seu olhar se volta para uma cadeia de montanhas e em destaque o Monte Horebe e vê um arbusto em chamas. Ao perceber que as chamas não consumiam a árvore, eis que decide examinar de perto (Êxodo 3:1-3).
Provavelmente, Moisés estava em meio a uma crise existencial, porém, inversamente proporcional a Fernando Pessoa, quando em seu existencialismo, se imagina existir antes da vida, ao declamar o soneto, “Aconteceu-me do alto do infinito// Esta vida…”
Neste soneto, Pessoa dá a entender que a “alma” é uma entidade fora do corpo e que o seu “eu” pessoal é um ser “fosco” e banido do país de onde estava. Em outras palavras, Pessoa se coloca quase como um ser divino expulso do seu habitat.
Apesar dos devaneios à parte, todo ser humano passa por angústias no curso da existência.
Provavelmente eu esteja neste momento falando com alguém angustiado, sem rumo, perdido em seus pensamentos, longe de casa, abandonado pelos pais, abandonado pelo cônjuge, desempregado, dependente do sogro à semelhança de Moisés;
numa crise de abstinência por causa de achar que a solução estava nas drogas; endividado e sem a condição necessária para o sustento; alguém que não consegue ver saída do pântano escuro em que encontra a sua alma.

Assim estava Moisés. E pior, ele estava sofrendo por não poder fazer nada para resgatar o povo escravizado das mãos do Faraó.
Provavelmente, ele se sentia um inútil naquele momento, pois perdera toda a influência que tinha para pelo menos tentar alguma coisa.
Afinal, ele possuías as prerrogativas para se tornar um futuro Faraó e com o poder nas mãos poderia fazer diferente.
Entretanto, por um instante ele pensou: “mas esse é método populista que muitas vezes promete o céu, mas entrega o inferno”.
Porém, ainda assim, Moisés entende que parece ter escolhido a pior forma, pois se revoltora contra o Estado por causa do inconformismo em ver o sofrimento alheio. Ou seja: A sua revolta lhe custara uma fulga.
E nesta fuga, a sua mente entra em aflição e fantasmas rondam os seus pensamentos. Ele se vê preso, torturado por algozes que odeiam a liberdade.

Contudo, o texto bíblico diz que Deus estava vendo toda “a aflição” do povo nas mãos do Faraó e que daria um jeito de libertá-lo do jugo da escravidão (Êxodo 2:78-12).
Moisés só não contava que ele seria o libertador. O homem que teria de retornar ao lugar de onde fugiu como criminoso.
A Bíblia diz que Moisés era um homem preparado intelectualmente e militarmente (Atos 7:22), mas precisava aprender no deserto o que nenhuma universidade ou influência governamental o daria.
Naquela sarça, sozinho, na escuridão da noite, num pico da montanha, aos sons dos bichos e dos seus roncos, Moisés ouve a voz de Deus à semelhança de um trovão. O susto é enorme, o medo faz tremer as pernas, mas em reverência, entra descalço na presença do Eterno.
A escritora Ellen White, diz o seguinte acerca de Moisés: “Todos os que se habilitam a ser úteis devem ser adestrados pela mais severa disciplina mental e moral; e Deus os ajudará, unindo o poder divino ao esforço humano” (CPB. Patriarcas e Profetas, 16 ed., 2007, p. 248).

Em suma, naquele momento a sós no monte, Moisés é tomado pelo poder de Deus e sai dali compreendendo que sem o Senhor o homem não é nada, pois ele é transitório e tudo passa.
Ele compreende que a paciência de Deus diante do mal, não deve ser interpretada como negligência da Sua parte, mas que os métodos divinos são diferentes dos métodos humanos, pois para combater o pecado, não é possível por métodos e méritos humanos.
Portanto, naquele instante cai a ficha, e Moisés, como se estivesse num campo de concentração em que vira muitos Hurbinek morrerem, entende que mesmo em meio de infortúnios e desgraças, o clamor do povo não é em vão.
No tempo certo, Deus intervém. Seja de forma pessoal através do Seu porta-voz, ou através de uma coalizão em prol da liberdade das pessoas.

E, como o tempo é dEle e Ele não Se limita a pressa, o Senhor Deus tem a paciência de esperar um Moisés ou Churchill para libertar indefesos.
Aguarde as cenas dos próximos capítulos em que a liberdade exigida por Moisés a Faraó, vai além do escopo humano, pois o Senhor Deus não quer somente te libertar das garras da tirania, Ele quer te redimir para uma Pátria onde os homens não mandam.
Que Deus te abençoe!